O Sagrado se fez gente.
Não moço. Não foi uma noite tão feliz. Fazia frio. O vento cortante feria os lábios, ressecava os ossos.
Os que vieram recensear-se abrigavam-se como podiam. Não era tanto por maldade que os moradores do lugar não ofereciam hospedagem. É que eles mesmos viviam tão modestamente que era com dificuldade que tampavam as frestas e aninhavam-se em seus casebres. Ademais, era muita gente de uma vez só na provinciana e pacata Beth-Lehem.
Eu estava ao relento, sob as estrelas de um céu gelado-escuro, como de costume. Não, não. Não é que eu seja uma criatura soturna, boemia ou romântica. Sou só um pastor.
Isto é, sou sem-teto, sem terra, sem educação, sem eira-nem-beira... Cuido de ovelhas, só isso – esses animais frágeis, melancólicos, quase tanto quanto eu.
A noite era como muitas outras – porque, na verdade, tudo é igual, a gente é que é sempre diferente. Havia estrelas, havia vaga-lumes, havia sons ao longe: mugidos, latidos, choros de criança...
Na mesmice do balanço das arvores, aconteceu alguma coisa diferente aos meus olhos. De repente, as estrelas de sempre pareciam brilhar mais que o normal. Meus ouvidos sintonizaram um choro de recém-nascido. As folhas das arvores pareciam musica angelical. Os pirilampos pareciam brilhar gloriosamente.
Continuei a caminho do aprisco. As ovelhas, sem perguntar nada, me seguiam tranqüilas e pacientes. O choro de criança ficava mais forte e pude ver de onde vinha.
Uma destas famílias sem nada havia ocupado uma das grutas onde os animais se abrigavam e ali disputavam aconchego junto a bois e ovelhas.
O pai tinha o rosto sulcado pelo suor, franzido pelo trabalho rude. A mãe parecia mais a irmã do recém-nascido, tão jovenzinha. No rosto, a perplexidade de quem contempla o maior dos mistérios: a Vida. Nos lábios, o sorriso tímido. Nos olhos marejados, as gotas salgadas que transbordavam daquelas janelas da alma.